terça-feira, janeiro 1

O regresso a casa de Benazir Bhutto


Karachi é a cidade paquistanesa mais caótica e a sua população, constituída na sua grande maioria por imigrantes, tende a ver o ar irrespirável provocado pela circulação automóvel e os ocasionais momentos de violência política, como realidades cívicas que devem ser reconhecidas, aceites, depois ignoradas. Mas não foi esse o caso relativamente aos acontecimentos que rodearam o regresso a casa de uma figura local, na passada quinta-feira. Um ataque bombista contra a caravana da antiga primeira-ministra, Benazir Bhutto provocou a morte a mais de 130 dos seus apoiantes e seguranças, mutilando e ferindo muitos dos que se juntaram em redor do seu veiculo.
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Os meses de especulação à volta do regresso de Bhutto à cena política, após oito anos de exílio forçado que impôs a si própria, terminaram junto à porta 21 do Aeroporto Internacional do Dubai. Bhutto chegou num pequeno veículo normalmente reservado a passageiros portadores de deficiência. Saiu lentamente, abraçou as suas duas jovens filhas, enquanto os flashes das câmaras fotográficas disparavam e o seu marido Asif Zardari assistia com um sorriso copioso. “Nós também regressaremos ao Paquistão muito em breve”, disse ele, à medida que a sua esposa se encaminhava para a saída. Passou pelos jornalistas sem parar, deixando a sala de embarque congestionada, e entrou a bordo da cabine da primeira classe do voo 606 da Air Emirates.
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Tinha negociado um lugar a bordo do avião na qualidade de jornalista destacado por uma estação de televisão norte-americana, e para lá fui conduzido passando pelo cordão de homens fardados que se conservavam à entrada do avião. Entretanto, fotógrafos descarregavam as últimas imagens nos mini-laptops, precariamente apoiados nos seus antebraços; engenheiros de som enrolavam os cabos vermelhos dos microfones e Lucas, um assistente de bordo australiano de Brisbane, de olhos azuis, esforçava-se por sentar os excitados membros do partido popular paquistanês de Bhutto, antes da descolagem.
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À medida que o avião prosseguia na sua subida vertiginosa sobrevoando o Mar Arábico, faziam-se ouvir as palavras de ordem de “Benazir” e “Bhutto” vindas dos seus apoiantes que viajavam na classe económica. Um poster de grandes dimensões de uma Bhutto com ar cansado, foi suspenso sobre a asa esquerda do avião, continuando a ignorar-se os sinais luminosos de “Apertar os cintos”. Lucas respondia à crescente confusão de sobrolho levantado, deixando transparecer um sorriso que denotava cansaço.
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Bhutto apareceu finalmente na passagem de acesso à classe económica, enquanto equipas das câmaras de televisão se debatiam por chamar a sua atenção e fotógrafos subiam aos lugares para obter os melhores grandes planos. Do lado oposto da asa, um homem baixo com uma dentadura saliente, exibia-se mostrando uma fotografia dele próprio do tamanho de um poster. A imagem parecia mostrar Bhutto passando por ele à medida que irrompia pelo lobby de um hotel. Ela fez o mesmo a bordo.
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Victoria Schofield, uma velha amiga de Bhutto do seu tempo de estudante em Oxford, parecia imperturbável face ao pandemónio à sua volta, enquanto lia o romance de Jodi Picoult “Mercy”. “A minha filha deu-mo como objecto de distracção para a viagem”, explicou ela.
Repentinamente, uma escalada de confrontos entre os apoiantes de Bhutto e os membros da comunicação social, aqueceram os ânimos. “Se não se senta, regressaremos ao Dubai”, gritava uma assistente de bordo. “Isto não é uma brincadeira”. “Senhor, o cinto de segurança, cinto, cinto, cinto”, berrava outra para aquela concentração. Momentos mais tarde, o sistema de Public Address deu sinal de vida. “Obrigado por escolherem as linhas aéreas Emirates”, entoava um Capitão Parry, anunciando a descida do voo EK606 para Karachi. “Para aqueles que regressam ao Paquistão após uma longa ausência, desejo-lhes uma estadia agradável e em segurança.”
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E foi agradável, pelo menos durante algumas das horas que se seguiram. Bhutto abandonou o avião acenando com um exemplar do Alcorão, antes de ser rapidamente conduzida em direcção a uma minivan que aguardava. Uma hora mais tarde, foi transportada para uma zona de lugares sentados à prova de bala de um autocarro, por meio de um sistema de elevação especialmente concebido para esse fim. Assim que o veículo abandonou o aeroporto, milhares de militantes do PPP rodearam a sua líder, acenando com bandeiras e cantando slogans. Não se produziu muito durante quase toda a tarde: uma dúzia de camiões irromperam carregando tripods para máquinas fotográficas, enquanto pick-ups da polícia transportavam homens armados com capacetes azul escuro, coletes à prova de bala e cassetetes.
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Uma música Urdu soou estridente vinda de carros estacionados, homens vestidos de shalwar kameez (calça e túnica) em cores branco e azul, gritavam com as armas erguidas, e rapazes subiam às arvores da beira da estrada para disfrutar de melhor vista. No centro desta grande agitação estava Bhutto que, ou acenava da parte da frente do autocarro a descoberto onde seguia – sem a protecção do vidro reforçado, mas ladeado de apoiantes – ou dava resposta aos intermináveis interrogatórios da imprensa. “Como se sente neste preciso momento?” perguntava um reporter sueco, “Está preocupada com a sua segurança?” insistia o homem alto da BBC. Às dezenas de homens do aparelho à procura de um soundbite, tinha-se-lhes primeiro informalmente pedido para avançarem sobre as multidões, distribuindo-se por uma extensão de 20 pés a partir da parte traseira do autocarro.
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Ao anoitecer a caravana dos veículos mal tinha saído das imediações do aeroporto e à medida que a tarde irrompia, aumentavam as multidões; muitos apoiantes buzinavam por entre a multidão comprimida, dois ou três numa motorizada, às vezes famílias inteiras com crianças empoleiradas à frente. Surgiram fogos de artifício por entre os gases dos escapes e eram atiradas mãos cheias de pétalas de rosa de pontes enfeitadas com taipais dizendo “BEM VINDA A CASA BENAZIR”. Eu permaneci junto à caravana, a recuperar do estado de fadiga e de vontade de comer, comendo biscoitos de chocolate e bebendo chai quente providenciados por amigos trabalhadores do partido.
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Ouviu-se um rebentamento particularmente forte mesmo à minha frente, assim que a caravana parou no seguimento de um dos muitos congestionamentos de trânsito. Khawaja Maqbool Mustafa, um proprietário agrícola de Multan, localizado a 500 milhas a nordeste de Karachi, saltou para fora do Toyota SUV que partilhávamos: “Pensam que foi só o rebentamento de um pneu?”, perguntou ele, dirigindo-se cautelosamente para o local da explosão. Segundos mais tarde chegou a sua resposta. Assim que abri a porta com a minha câmara de vídeo preparada, uma intensa explosão fez estremecer os camiões agrupados imediatamente atrás do autocarro de Bhutto. Figuras espectrais vestidas de branco começaram a correr, seguindo-se-lhes gritos e expressões de lamento em curta sucessão. Um homem com as pernas a escorrer sangue e metade de um pé desfeito inclinava-se junto a uma motorizada, enquanto que a notória e ineficaz grelha eléctrica de Karachi designada por semáforos, emitia um breve sinal luminoso laranja desmaiado, destinado a chamar os serviços de emergência – quando chegavam.
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Fugi, receando nova explosão. O primeiro rebentamento pareceu-me resultar de uma granada, não tendo gerado nenhuma onda de choque no local onde me encontrava. Mas a julgar pelos corpos e ferimentos nos que se afastavam a coxear de perto do veiculo de Bhutto, a segunda explosão tratou-se de um ataque suicida como os que são tão comuns no Iraque; os coletes de explosivos de atacantes que detonados rasgam a carne humana.
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Os ataques bombistas deram por terminado um dia horrível com muita agitação e celebrações várias, mas não para grande surpresa de alguns dos observadores mais cínicos.
Bhutto tinha sido avisada mais do que uma vez de que a sua vida estaria sob ameaça no caso de regressar ao Paquistão. Mesmo que questionável a credibilidade dessas ameaças, não se poderia negar que uma manifestação pública com esta dimensão em que o sistema de protecção pessoal era assegurado unicamente por uma mão cheia de polícias, não significasse um sério risco do ponto de vista da segurança numa cidade tão volátil como Karachi.
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Willem Marx, Prospect,
(edição de Novembro 2007)
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