domingo, janeiro 20

Défice democrático


Comparo a nossa democracia à existência precária de um albatroz. Sem termos conseguido mudar as regras do jogo, a nossa democracia coexiste na base de um poder paralelo que se impôs no Estado Novo e que se tem vindo a afirmar, ao ir cimentando a sua influência junto do poder institucional, do poder corporativo e, porque não, também junto de alguma “sociedade civil” que nada quer ter a ver com a política, mas que vai hostilizando os nossos governantes ao ponto de lhes toldar a razão, a liberdade de movimentos e a própria noção que eles têm da realidade. A passada semana foi particularmente fértil em inéditos alimentados pela acção governativa, que nos faz pensar se o presente executivo está a ir por bom caminho em algumas das frentes de acção que se propôs instituir e que combinam com os ataques cirúrgicos a que temos vindo a assistir nos últimos dias, nomeadamente no que diz respeito à política da saúde.

O encerramento compulsivo de um grande número de unidades hospitalares, centros de saúde e maternidades, fará parte de uma política de reforma do sector da saúde devidamente fundamentada em estudos que se tenham debruçado não unicamente na vertente economicista do problema, mas também na social?

As medidas a serem levadas à prática e vaticinadas pelos respectivos estudos, terão salvaguardado as posições dos vários agentes envolvidos, desde logo os médicos e o pessoal hospitalar, já para não falar dos utentes que a esses não se lhes dá voz activa?

Será que os hospitais centrais concelhios ou distritais têm capacidade física, operativa e humana para responder, em condições mínimas aceitáveis, ao enorme afluxo de doentes que, entretanto, começaram a assomar às suas instalações?

E qual é o papel da actividade empresarial privada na oferta de serviços de saúde às populações do interior: traduzir-se-à por “quem pode pagar vive, quem não pode pagar morre”?

E por último, o governo a viver em autêntico estado de deslumbre, caucionado pelo poder que lhe foi conferido pela maioria absoluta, terá ideia das repercussões que poderão resultar da aplicação desta política? Outro acontecimento inédito foi a audição do senhor governador do Banco de Portugal em sede de comissão parlamentar, sobre as irregularidades no BCP. Protegido pelo segredo profissional pouco ou nada esclareceu os seus inquiridores, tendo saído com um sorriso nos lábios de “dever cumprido”, naturalmente escudado pelas “costas quentes” do poder institucional. A tudo isto vamos assistindo pacificamente, debaixo de uma ou outra ameaça de um eventual ataque terrorista, qual cereja destinada a dar cor ao bolo da incerteza da nossa própria sobrevivência em condições mínimas de dignidade e respeitabilidade, por parte dos poderes políticos que nos governam.

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Revisão eleitoral autárquica em agenda


Relativamente aos vários projectos de lei recentemente aprovados na Assembleia da República, com os votos favoráveis do PS e do PSD, sobre a revisão da lei eleitoral autárquica, fica a sensação de que estes diplomas têm como objectivo favorecer aquele que virá a ser o futuro presidente da Câmara Municipal de Lisboa em 2009, ao que tudo indica, o Dr. António Costa.
Um projecto de lei “cozinhado” com a complacência desta nova presidência itinerante do PSD, que suprime o essencial daquela que deveria ser uma revisão da lei autárquica projectada para garantir o crescimento económico das regiões, servindo os interesses e as necessidades básicas das populações, por sua vez afastando os agentes corruptores que pululam em redor dos municípios, afogando-os em dívidas, sujeitando-os à política onerosa da mera obra de benfeitoria, infundada e superficial, deleite para a vista, inutilidade prática.
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O anterior projecto de lei da delimitação de mandatos, permanece na gaveta. Os actuais autarcas, presidentes de câmara, poderão continuar a encabeçar as listas eleitorais, fazendo-se eleger ad eternum, vendo ainda os seus poderes reforçados, na medida em que o executivo passa a ser composto por uma maioria absoluta de vereadores, provenientes da lista vencedora.
Iremos, assim, ter muitas Fátimas Felgueira, com poderes reforçados legitimados, a depauperar as finanças dos municípios em benefício próprio (vide pagamento de honorários principescos a advogados), ainda durante muito mais tempo.
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No essencial, estes projectos de lei poderiam visar uma maior racionalidade do processo eleitoral autárquico: o novo modelo prevê a eleição dos órgãos executivos, incluindo o presidente de câmara, através da lista mais votada para a Assembleia Municipal.
O PS, partido socialista, que, inicialmente, previa a eleição da totalidade do executivo camarário com base na lista mais votada, excluindo, portanto, qualquer representação no corpo de vereadores dos restantes partidos, acabou por subscrever a proposta do PSD, partido social-democrata, que prevê que os partidos da oposição continuem representados no respectivo executivo camarário.
Com base num projecto alternativo apresentado pelo CDS/PP, a proposta deste partido é de longe a que terá a capacidade de reunir maiores consensos, fora do bloco central de interesses, uma vez que assegura a representatividade, em termos proporcionais, dos partidos da oposição na nomeação de metade dos vereadores, e dando ainda a possibilidade ao presidente eleito de poder recrutar vereadores fora da sua lista, no âmbito da formação de coligações pós-eleitorais, privilegiando-se, deste modo, a capacidade técnica e profissional do órgão executivo, em detrimento da selecção com base na óptica do compadrio e da clientela.
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Com os votos favoráveis do PS e do PSD, a aprovação da referida lei estará, à partida, garantida. Resta-nos, pois e mais uma vez, confiar no bom senso do Presidente da República, no sentido de vetar esta lei inconclusiva, devolvendo-a à Assembleia e exigindo que a sua redacção venha a ser alargada de modo a melhor servir o interesse das populações no contexto de uma gestão moderna criadora de valor, com base num referencial assente em critérios de eficiência, eficácia e obtenção de resultados.

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sábado, janeiro 12

A solução Portela +1


À semelhança de muitos ilustres cidadãos deste nosso pequeno burgo, também eu já me pronunciei aqui e aqui, sobre a construção do novo aeroporto internacional de Lisboa.
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A solução Portela + 1, é decididamente a solução que eu não defendo e muito gostaria de saber o que move a Associação Comercial do Porto a pronunciar-se sobre esta matéria, a não ser os habituais interesses económicos que ladeiam a escolha do local de implantação do novo aeroporto.
Esses interesses são quanto a mim legítimos desde que a anteriori não pretendam interferir na referida escolha, cuja decisão só caberá ao governo, "assessorado" pelos respectivos estudos técnicos sobre a sustentabilidade do projecto, designadamente nas áreas ambiental e urbanística - assim como também caberá ao governo decidir se a referida construção deverá ser faseada, se o aeroporto da Portela deverá ser desactivado e/ou a empresa ANA privatizada.- A decisão é uma decisão política e não deverá, quanto a mim, ser tomada com base em critérios exclusivamente economicistas, visto tratar-se de uma grande infra-estrutura que tem por base dois aspectos fundamentais: a previsão do aumento em larga escala do tráfego aéreo e respectiva circulação de pessoas e bens a muito curto prazo, e o período de conservação/utilização que se espera venha a ser de várias décadas.
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Aspectos bastante positivos sobressaíram de toda a polémica gerada à volta deste tema, a começar pela mobilização da chamada “sociedade civil”, concretamente na pessoa do Sr. Francisco Van Zeller, presidente da CIP, que mobilizou os meios necessários para a realização de um novo estudo que terá servido de base à apreciação favorável, por parte do LNEC, da nova localização, a de Alcochete. Relevante foi igualmente a participação activa em todo este processo, por parte de professores catedráticos e docentes universitários que se empenharam na presente causa, e que, independentemente de terem ou não sido movidos por interesses de vária ordem, ajudaram a contribuir para o enriquecimento e consolidação do nosso sistema democrático, através das regras básicas da salutar convivência.
No entanto, o aspecto mais positivo foi o facto de o senhor primeiro-ministro, pressionado ou não, (e aqui faço referência à intervenção do senhor Presidente da República que, desde o início, abraçou esta causa) ter mostrado uma certa dose de humildade perante os portugueses; ter chegado à conclusão de que as posições unipessoais, mesmo que subscritas pelos altos dirigentes de cargos públicos, podem deitar a perder o saldo positivo daquele que tem sido sinónimo de um bom projecto de governação, ultrapassando o domínio do racional para passar ao da pura obstinação.
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Não posso, no entanto, deixar de recordar os indecifráveis milhões gastos, ao longo das várias legislaturas, em estudos que indicavam a construção do novo aeroporto na OTA, e estabelecer um paralelo com as discussões acaloradas e não chegadas a bom termo, entre o Ministério das Finanças e as Confederações de Trabalhadores, sobre o aumento da taxa salarial para o corrente ano, traduzindo-se a divergência de posições numas insignificantes décimas, valor já largamente ultrapassado por aquela que se prevê vir a ser a subida da taxa de inflação para o mesmo período, como consequência do aumento galopante a que temos vindo a assistir do preço dos combustíveis fósseis.
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quinta-feira, janeiro 10

Tratado de Lisboa


Foi uma decisão sensata do governo a de proceder à ratificação do Tratado de Lisboa através da via parlamentar, pelas razões já sobejamente conhecidas.
Por outro lado, penso que o povo português teria o direito de se pronunciar através do Referendo; mas um povo português esclarecido, responsável e que soubesse separar as águas, que o referido “pedido de pronunciamento” não servisse para punir o governo com o respectivo cartão vermelho. A bem da verdade, o governo correria esse risco.
A união europeia dos Estados é hoje uma inevitabilidade, um dado adquirido, a solução possível para a nossa sobrevivência a curto, a médio e a longo prazo.
Acontece porém, e coincidentemente, que a viabilidade da ratificação do Tratado no Parlamento só se torna possível porque o Partido Socialista dispõe de uma maioria de deputados na Assembleia, salvo erro a terceira desde o período pós-revolução. E é sobre esta questão que nos deveríamos todos debruçar, sobretudo quando se observa que está em causa o próprio regime democrático, quando é vetado o direito aos cidadãos de estes se manifestarem.
A bem da verdade, foi o povo que escolheu, nas últimas eleições legislativas, os parlamentares que irão agora ratificar o referido Tratado. Mas fê-lo recorrendo ao voto útil, de uma forma esforçada, motivado por um conjunto de circunstâncias que o levou a dar a maioria absoluta ao Partido Socialista.
As maiorias absolutas não são nem nunca foram saudáveis à democracia, assim como os sistemas políticos bipolares. Um sistema de bipolarização partidária como existe no nosso país e na maior parte dos países da União Europeia, só revela imaturidade política por parte dos eleitores; no nosso caso, denuncia a falta de preparação e a fragilidade ou ausência de convicções políticas da maioria dos políticos que integram os pequenos partidos, não inspirando, por isso, confiança aos cidadãos que entregam livremente e de “mão beijada” os seus destinos nas hostes partidárias de um sistema de alternância bipolarizado, que propicia o cultivo da corrupção e do compadrio político, ao mesmo tempo, favorecendo o proteccionismo e o nepotismo.
Infelizmente o povo português, a sociedade civil, mergulhou num estado de indiferença em relação à sua quota-parte de responsabilidade na construção de um Portugal mais moderno e melhor, não passando a contestação pontual de ruído de circunstância, produzido nos raros momentos de lucidez em que este acorda para a realidade.
Que estes acontecimentos tenham, pelo menos, a grande virtude de se poder exigir ao nosso sistema politico-partidário novos padrões de qualidade no que diz respeito à selecção dos deputados que no Parlamento estão destinados a nos representar.

segunda-feira, janeiro 7

O virar de página


As reformas necessárias na administração pública não foram feitas em tempo útil, os anteriores governos nunca levaram muito a sério a necessidade da redução do deficit orçamental por óbvios imperativos eleitoralistas, e ao longo de uma caminhada de cerca de trinta anos, pontuada quer pelo desapertar ou pelo apertar do cinto, eis-nos chegados a um ponto em que o país se vê confrontado com uma situação de “mata ou morre”.
O senhor Presidente da República no seu discurso de ano novo, fez uma chamada de atenção para a assimetria existente entre os «rendimentos auferidos por altos dirigentes de empresas face aos salários médios dos seus trabalhadores», tendo sido alvo de muitas criticas, inclusivamente de a linha de conteúdo do seu discurso se encontrar ideologicamente posicionada à esquerda, o que, tendo ele sido eleito pela maioria das intenções de voto do centro-direita, só denotaria contra-senso.
Este último argumento é facilmente rebatível se atendermos ao facto de que o Presidente da República desde que eleito, funciona ou deverá funcionar, como uma espécie de entidade reguladora da acção governativa. No mínimo, a todos aqueles que lhes interessa a estabilidade política, deveriam congratular-se pelo facto de o desagrado manifestado pelo senhor presidente quanto aos efeitos práticos de certas medidas tomadas pelo governo, ao abrigo do seu programa de reformas, se circunscrever unicamente ao plano da retórica discursiva e não se estender à não ratificação peremptória de certos diplomas aprovados em assembleia, protegidos que ainda estão pelo emblema da “cooperação estratégica” que tem vindo a alimentar esta espécie de “amitié amoureuse” entre o governo e a presidência da República.
Quanto à questão da discrepância entre os rendimentos auferidos pelas diferentes classes sociais no activo, só prova que o nosso país está mais próximo de uma América Latina do que propriamente de uma União Europeia, da qual faz parte. O que faz com que trabalhadores no activo com formação académica ao nível da licenciatura aufiram pouco mais do que o salário mínimo, é o facto de a oferta ser bastante superior à procura. Se atendermos ao facto de o elevado índice da oferta estar em relação directa com o baixo índice da procura, chegamos à conclusão que existe no nosso país uma tendência para a política do desinvestimento, por parte dos empresários que detêm os meios para ajudar a fazer crescer a nossa economia. Se igualmente atendermos a que esses mesmos empresários são os agentes económicos que têm vindo a beneficiar do apoio do Estado quer directa ou indirectamente através de financiamentos a fundo perdido ou negociados com taxas de juro bastante reduzidas, então a conclusão a tirar é a de que esses mesmos empresários são nocivos ao desenvolvimento da nossa economia, uma vez que não são geradores de riqueza em toda a sua amplitude, dado que aplicam as mais-valias obtidas, neles próprios (potenciais contribuidores para o aumento da taxa de inflação), não reinvestindo os seus lucros em novos meios geradores de riqueza para o país, ao mesmo tempo, criando mais postos de trabalho e assim, ajudando a reduzir a elevada taxa de desemprego.
Não será a altura de o governo começar a impor regras nos apoios que concede ao actual tecido empresarial português? Não será a altura de o governo começar a privilegiar outras camadas da sociedade tão ou mais capazes do que as que fazem parte das actuais clientelas partidárias, projectos de empresários alavancados em organizações do tipo “opus dei”, “maçonaria” ou outras agremiações clubísticas cuja natureza é tão misteriosa como os fins que se propõem atingir?
Este é, pois, para mim o contexto essencial em que se insere a mensagem do senhor presidente, e não naquela velha máxima já tão gasta e arcaizada do “tirar aos ricos para dar aos pobres”, expressão à qual tentaram colar a polémica passagem do referido discurso.

sexta-feira, janeiro 4

Ingerência do governo ou talvez não


Por um lado, o sistema capitalista português assenta num modelo de sociedade em que o capital está concentrado num número muito restrito de empresários, ligados aos diferentes sectores da economia, dos quais o Estado depende para assegurar a sua sobrevivência. Por outro lado, e como nunca existiu uma consciência cívica da necessidade do cumprimento das obrigações fiscais por parte do restante tecido empresarial produtivo ligado às pequenas e médias empresas e às profissões liberais, a prática recorrente da fuga aos impostos generalizou-se, tendo assumido carácter de preceito doutrinário.
Numa situação periclitante como esta, acrescida de uma nova funcionalidade nas suas competências que tem a ver com a defesa do modelo social como filosofia de governance adoptada, ao Estado e às entidades reguladoras que administra só lhes cabe “fechar os olhos” às más práticas adoptadas pela gestão dos domínios privados dos grandes grupos económicos. Mas mesmo para o Estado, em relação ao poder das clientelas, existem limites intransponíveis, sobretudo quando o problema assume proporções que ultrapassam o nosso espaço geográfico, entram na esfera jurisdicional, e ameaçam sob a forma de efeito colateral o bom funcionamento da economia de mercado, pondo em causa a credibilidade do próprio sistema financeiro português.
E aqui, a eventual sugestão, por parte do governo, de um alto ex-funcionário público que detinha um cargo de confiança política junto de uma instituição pública, para presidir ao maior banco privado português, não foi mais do que a aplicação de uma medida cirúrgica, tomada em tempo útil pelo poder político (que tem toda a legitimidade em actuar sempre que esteja em causa o bom nome de instituições, sectores-chave da economia), como resposta aos ilícitos praticados tornados públicos por uma entidade financeira que se tinha por idónea e impoluta aos olhos da opinião pública e dos restantes agentes económicos.
No entanto, e para deixarmos de parecer sérios ao invés de o sermos, a demissão do senhor governador do Banco de Portugal seria a medida mais acertada a tomar no quadro de uma maior moralização no que diz respeito às regras que gerem o nosso sistema institucional.


terça-feira, janeiro 1

O regresso a casa de Benazir Bhutto


Karachi é a cidade paquistanesa mais caótica e a sua população, constituída na sua grande maioria por imigrantes, tende a ver o ar irrespirável provocado pela circulação automóvel e os ocasionais momentos de violência política, como realidades cívicas que devem ser reconhecidas, aceites, depois ignoradas. Mas não foi esse o caso relativamente aos acontecimentos que rodearam o regresso a casa de uma figura local, na passada quinta-feira. Um ataque bombista contra a caravana da antiga primeira-ministra, Benazir Bhutto provocou a morte a mais de 130 dos seus apoiantes e seguranças, mutilando e ferindo muitos dos que se juntaram em redor do seu veiculo.
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Os meses de especulação à volta do regresso de Bhutto à cena política, após oito anos de exílio forçado que impôs a si própria, terminaram junto à porta 21 do Aeroporto Internacional do Dubai. Bhutto chegou num pequeno veículo normalmente reservado a passageiros portadores de deficiência. Saiu lentamente, abraçou as suas duas jovens filhas, enquanto os flashes das câmaras fotográficas disparavam e o seu marido Asif Zardari assistia com um sorriso copioso. “Nós também regressaremos ao Paquistão muito em breve”, disse ele, à medida que a sua esposa se encaminhava para a saída. Passou pelos jornalistas sem parar, deixando a sala de embarque congestionada, e entrou a bordo da cabine da primeira classe do voo 606 da Air Emirates.
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Tinha negociado um lugar a bordo do avião na qualidade de jornalista destacado por uma estação de televisão norte-americana, e para lá fui conduzido passando pelo cordão de homens fardados que se conservavam à entrada do avião. Entretanto, fotógrafos descarregavam as últimas imagens nos mini-laptops, precariamente apoiados nos seus antebraços; engenheiros de som enrolavam os cabos vermelhos dos microfones e Lucas, um assistente de bordo australiano de Brisbane, de olhos azuis, esforçava-se por sentar os excitados membros do partido popular paquistanês de Bhutto, antes da descolagem.
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À medida que o avião prosseguia na sua subida vertiginosa sobrevoando o Mar Arábico, faziam-se ouvir as palavras de ordem de “Benazir” e “Bhutto” vindas dos seus apoiantes que viajavam na classe económica. Um poster de grandes dimensões de uma Bhutto com ar cansado, foi suspenso sobre a asa esquerda do avião, continuando a ignorar-se os sinais luminosos de “Apertar os cintos”. Lucas respondia à crescente confusão de sobrolho levantado, deixando transparecer um sorriso que denotava cansaço.
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Bhutto apareceu finalmente na passagem de acesso à classe económica, enquanto equipas das câmaras de televisão se debatiam por chamar a sua atenção e fotógrafos subiam aos lugares para obter os melhores grandes planos. Do lado oposto da asa, um homem baixo com uma dentadura saliente, exibia-se mostrando uma fotografia dele próprio do tamanho de um poster. A imagem parecia mostrar Bhutto passando por ele à medida que irrompia pelo lobby de um hotel. Ela fez o mesmo a bordo.
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Victoria Schofield, uma velha amiga de Bhutto do seu tempo de estudante em Oxford, parecia imperturbável face ao pandemónio à sua volta, enquanto lia o romance de Jodi Picoult “Mercy”. “A minha filha deu-mo como objecto de distracção para a viagem”, explicou ela.
Repentinamente, uma escalada de confrontos entre os apoiantes de Bhutto e os membros da comunicação social, aqueceram os ânimos. “Se não se senta, regressaremos ao Dubai”, gritava uma assistente de bordo. “Isto não é uma brincadeira”. “Senhor, o cinto de segurança, cinto, cinto, cinto”, berrava outra para aquela concentração. Momentos mais tarde, o sistema de Public Address deu sinal de vida. “Obrigado por escolherem as linhas aéreas Emirates”, entoava um Capitão Parry, anunciando a descida do voo EK606 para Karachi. “Para aqueles que regressam ao Paquistão após uma longa ausência, desejo-lhes uma estadia agradável e em segurança.”
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E foi agradável, pelo menos durante algumas das horas que se seguiram. Bhutto abandonou o avião acenando com um exemplar do Alcorão, antes de ser rapidamente conduzida em direcção a uma minivan que aguardava. Uma hora mais tarde, foi transportada para uma zona de lugares sentados à prova de bala de um autocarro, por meio de um sistema de elevação especialmente concebido para esse fim. Assim que o veículo abandonou o aeroporto, milhares de militantes do PPP rodearam a sua líder, acenando com bandeiras e cantando slogans. Não se produziu muito durante quase toda a tarde: uma dúzia de camiões irromperam carregando tripods para máquinas fotográficas, enquanto pick-ups da polícia transportavam homens armados com capacetes azul escuro, coletes à prova de bala e cassetetes.
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Uma música Urdu soou estridente vinda de carros estacionados, homens vestidos de shalwar kameez (calça e túnica) em cores branco e azul, gritavam com as armas erguidas, e rapazes subiam às arvores da beira da estrada para disfrutar de melhor vista. No centro desta grande agitação estava Bhutto que, ou acenava da parte da frente do autocarro a descoberto onde seguia – sem a protecção do vidro reforçado, mas ladeado de apoiantes – ou dava resposta aos intermináveis interrogatórios da imprensa. “Como se sente neste preciso momento?” perguntava um reporter sueco, “Está preocupada com a sua segurança?” insistia o homem alto da BBC. Às dezenas de homens do aparelho à procura de um soundbite, tinha-se-lhes primeiro informalmente pedido para avançarem sobre as multidões, distribuindo-se por uma extensão de 20 pés a partir da parte traseira do autocarro.
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Ao anoitecer a caravana dos veículos mal tinha saído das imediações do aeroporto e à medida que a tarde irrompia, aumentavam as multidões; muitos apoiantes buzinavam por entre a multidão comprimida, dois ou três numa motorizada, às vezes famílias inteiras com crianças empoleiradas à frente. Surgiram fogos de artifício por entre os gases dos escapes e eram atiradas mãos cheias de pétalas de rosa de pontes enfeitadas com taipais dizendo “BEM VINDA A CASA BENAZIR”. Eu permaneci junto à caravana, a recuperar do estado de fadiga e de vontade de comer, comendo biscoitos de chocolate e bebendo chai quente providenciados por amigos trabalhadores do partido.
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Ouviu-se um rebentamento particularmente forte mesmo à minha frente, assim que a caravana parou no seguimento de um dos muitos congestionamentos de trânsito. Khawaja Maqbool Mustafa, um proprietário agrícola de Multan, localizado a 500 milhas a nordeste de Karachi, saltou para fora do Toyota SUV que partilhávamos: “Pensam que foi só o rebentamento de um pneu?”, perguntou ele, dirigindo-se cautelosamente para o local da explosão. Segundos mais tarde chegou a sua resposta. Assim que abri a porta com a minha câmara de vídeo preparada, uma intensa explosão fez estremecer os camiões agrupados imediatamente atrás do autocarro de Bhutto. Figuras espectrais vestidas de branco começaram a correr, seguindo-se-lhes gritos e expressões de lamento em curta sucessão. Um homem com as pernas a escorrer sangue e metade de um pé desfeito inclinava-se junto a uma motorizada, enquanto que a notória e ineficaz grelha eléctrica de Karachi designada por semáforos, emitia um breve sinal luminoso laranja desmaiado, destinado a chamar os serviços de emergência – quando chegavam.
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Fugi, receando nova explosão. O primeiro rebentamento pareceu-me resultar de uma granada, não tendo gerado nenhuma onda de choque no local onde me encontrava. Mas a julgar pelos corpos e ferimentos nos que se afastavam a coxear de perto do veiculo de Bhutto, a segunda explosão tratou-se de um ataque suicida como os que são tão comuns no Iraque; os coletes de explosivos de atacantes que detonados rasgam a carne humana.
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Os ataques bombistas deram por terminado um dia horrível com muita agitação e celebrações várias, mas não para grande surpresa de alguns dos observadores mais cínicos.
Bhutto tinha sido avisada mais do que uma vez de que a sua vida estaria sob ameaça no caso de regressar ao Paquistão. Mesmo que questionável a credibilidade dessas ameaças, não se poderia negar que uma manifestação pública com esta dimensão em que o sistema de protecção pessoal era assegurado unicamente por uma mão cheia de polícias, não significasse um sério risco do ponto de vista da segurança numa cidade tão volátil como Karachi.
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Willem Marx, Prospect,
(edição de Novembro 2007)
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