"
Burmese Faces", fotografia de Rodrigo Adão da Fonseca ***
**
Os monges budistas desempenharam um papel de primeiro plano na vida política e social do país. E, apesar da repressão, continuam a ser a única força capaz de fazer face aos militares.
*
*
Pode parecer estranho aos olhos dos observadores internacionais que a direcção do movimento de protesto popular em Myanmar, tenha sido assegurada por religiosos, geralmente considerados como estando acima das contingências terrestres. No entanto, não é a primeira vez que os monges budistas descem à rua para reivindicar uma mudança política.
Na realidade, a instituição monástica birmanesa tem uma grande tradição no âmbito do activismo político. Após o período da dominação britânica, os monges tiveram sempre um papel político central. Muitas das revoltas anti-coloniais foram, pelo menos em parte, organizadas e dirigidas pela classe clerical. Por exemplo, o venerando U Ottama, organizou em 1918, os primeiros actos no seio do Conselho geral das associações budistas. Foi ele que inaugurou a prática das campanhas de boicote e também foi o primeiro cidadão a ser preso pelas autoridades colonialistas, no seguimento de um discurso proferido em 1921. Por seu lado, o venerando U Wisara sucumbiu, após 166 dias, na sequência de uma greve de fome que iniciou contra o regime colonial.
A revolta armada mais importante contra o regime colonial na Birmânia, foi lançada em 1930-1931 pelo monge Saya San, e contou com uma forte componente budista. Os monges tiveram parte activa na organização dos “rebeldes” que participaram num movimento insurreccional que durou mais de dois anos, exigindo a intervenção de cerca de 10 000 soldados britânicos para o combater, tendo-se saldado pela morte de cerca de 10 000 birmaneses, de entre os quais o líder do movimento, Saya San.
Os monges tiveram de novo uma participação muito activa no movimento democrático que varreu o país em 1988. Os jovens noviços desempenharam um papel preponderante, na maior parte das manifestações da altura, organizadas e dirigidas pelos estudantes, no que toca à manutenção da ordem, conferindo ao movimento estudantil forte legitimidade moral – apesar de alguns relatórios se referirem à participação dos monges nas acções de represálias levadas a cabo pelos militares. Com o início da “carnificina” em 8 de Agosto de 1988, foram abatidos pelos militares numerosos religiosos.
Em Outubro de 1990, os monges de Mandalay (segunda cidade do país, antiga capital real e detentora do maior número de mosteiros), em sinal de protesto contra as mortes, as capturas e as humilhações infligidas durante a repressão de 1988, e contra o clima de insegurança vivido posteriormente, decretaram um boicote às oferendas feitas aos mosteiros pelos generais e suas famílias. O Conselho para a restauração da lei e da ordem da época (SLORC, o antigo nome dado ao regime), reagiu com violência atacando os mosteiros. Foram-lhes retirados os hábitos e colocados em prisão cerca de 300 monges.
No entanto, o regime está consciente da importância que detem a comunidade monástica junto da sociedade birmanesa. Através dos meios de comunicação que controla, são difundidas quase diariamente imagens e reportagens de visitas de oficiais aos mosteiros, fazendo a entrega de somas de dinheiro ou de objectos de devoção, ou ainda atribuindo-lhes títulos religiosos. Com estes actos, os generais no poder pretendem divulgar que contribuem para a construção de mosteiros e pagodes e, ainda, que obsequeiam as eminências religiosas com oferendas e presentes.
Os donativos e as atribuições de títulos constituem, da parte dos militares, uma tentativa grosseira de distinguir a hierarquia religiosa, dando-lhes uma imagem de legitimidade moral aos olhos da opinião pública.
É, no entanto, digno de nota o facto de o Ministério dos “Negócios” Religiosos ser actualmente dirigido por um militar, o general Thura Myint Maung. Na cultura budista birmanesa, todo o homem é suposto tornar-se monge, pelo menos uma vez na vida, geralmente antes do seu casamento ou após a morte de seu pai. Por outro lado, os clérigos têm um papel importante em matéria de ajuda social, colmatando, na maior parte dos casos, a falta de assistência provocada pela ausência do apoio governamental. Na maior parte das vezes os jovens seguem o caminho religioso para beneficiarem da educação gratuita fornecida pela instituição monástica.
Os mosteiros acolhem também numerosos jovens noviços descontentes, com a falta de oportunidades oferecidas por uma economia mal gerida e estritamente controlada de Myanmar. A própria envolvência monástica constitui um local propício para os debates, incluindo os políticos, onde as pessoas do povo se queixam dos seus males, buscando no templo aconselhamento e conforto religioso. Com o passar dos anos, os templos transformaram-se, assim, em locais onde fervilha a dissensão anti-governamental.
As actuais manifestações foram desencadeadas por uma preocupação muito própria: o aumento vertiginoso do preço da gasolina em meados de Agosto. As primeiras manifestações foram dirigidas por conhecidos militantes (alguns são membros da Geração de 88). Mas, após os incidentes de 5 de Setembro, na cidade de Pakokku, no centro do país, durante os quais vários monges foram severamente espancados ou presos pelos militares, os monges passaram a liderar o movimento de protesto.
Agora a questão está em saber se os religiosos têm capacidade para prosseguir com o seu movimento de protesto. A influência budista é forte e a emoção suscitada pelo espectáculo de soldatos a disparar sobre os monges poderia desencadear uma insurreição generalizada. Muitos esperam que, de futuro, os soldados se recusem a obedecer a ordens no sentido de atirar sobre os monges, mesmo que, até ao momento, não haja conhecimento de qualquer deserção ou ruptura na cadeia do comando, no seio das forças militares.
Brian McCartan, Asia Times Online