terça-feira, outubro 30

A malícia no Conselho de Estado


A ser verdade que António Capucho sucede a Marques Mendes no Conselho de Estado, será a primeira vez, na história do PSD, que um presidente eleito por sufrágio directo, subscritor da lista ganhadora em congresso que nomeou os dirigentes da sua comissão política, não ocupa aquele lugar deixado livre pelo líder cessante.
Os conselhos de jurisdição dos partidos políticos, baseado nos seus estatutos, seguem normalmente a nomenclatura do preceituado legal que rege o nosso Estado de direito no que diz respeito às boas práticas internas a ter em atenção quando está em causa a lisura dos procedimentos a adoptar, sempre que surjam divergências no plano da ética e dos bons costumes.
Imagine-se agora o cenário de um qualquer acto eleitoral em que o nível de abstenção se resumisse unicamente à votação dos militantes dos partidos políticos ou movimentos de cidadania constituídos para o efeito, e em que os partidos de esquerda (PCP, BE e MC) obtivessem a maioria dos votos, entendessem coligar-se e formar governo. Em Portugal seria razão bastante para dar lugar a um golpe de Estado, a avaliar pelo comportamento deste "barão" do PSD, o primeiro maior partido da oposição.
Pois, é essa a leitura que eu faço da obstinação de António Capucho em seguir um caminho falacioso incentivador das más práticas, baseando-se numa lógica de polichinelo, por sua vez apoiado pelos notáveis do partido, ávidos em controlar os centros de decisão e de informação procedentes da mais alta hierarquia do Estado.

segunda-feira, outubro 29

Sobre referendar a inevitabilidade


(...) A reivindicação do referendo é a única maneira de pegar nas poucas pontas de fio que sobram para um debate sobre a Europa, pobre, inquinado, desigual, ambíguo que seja, mas mesmo assim o único possível. O referendo dá um empowerment às pessoas comuns que nada mais dará, e esse "poder" é o único que as pode interessar pelas questões europeias, que as pode levar a prestar-lhes alguma atenção. Pedem-lhe o voto no meio da indiferença geral, mas mesmo assim são interpeladas. Muitos não farão nada, continuarão indiferentes, outros farão. Haverá mil razões impuras para o fazer, até porque o referendo está por excelência cheio de razões impuras, mas será que essas razões não têm a ver com a Europa? O argumento dos que dizem que os referendos europeus tendem a concentrar razões de insatisfação contra os governos que não têm nada a ver com a Europa, para mim não colhe. Os 200.000 manifestantes levados pela CGTP e pelo PCP estão a pronunciar-se sobre a Europa à sua maneira. Os que votariam contra Sócrates por causa do centro de saúde estão a pronunciar-se sobre a Europa, porque o aperto para o controlo do défice é uma política "europeia". Hoje quase tudo na governação tem a ver com a Europa, por isso, se se votar por razões impuras de política interna, também estamos a votar no modelo de uma política que é moldada por decisões europeias. Ninguém tem ilusões, a não ser os europeístas extremos, de que existe ou é possível existir uma "consciência europeia". Mas acredito, com a fé dos agnósticos, que talvez seja possível melhorar a "consciência" dos portugueses face à Europa e que isso é melhor que nada. Sem referendo é que é mesmo nada, estamos condenados à impotência cívica. (sic)
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Este é um belo texto de José Pacheco Pereira. Mas a sua inevitável utilidade é o emolduramento e a consequente afixação numa qualquer parede de uma dada biblioteca.
Que me lembre, o Dr. Pacheco Pereira, agora preocupado com a consignação do “empowerment às pessoas comuns”, termo que decerto não fará parte do léxico das classes sociais a que pertencem, sempre que se dignava evocar o cidadão comum, nos sucessivos programas televisivos em que tem participado, fazia-o num tom depreciativo (logo secundado pelo seu compagnon de route Lobo Xavier), concedendo-lhe um atestado de menoridade, ao declará-lo incapaz do exercício de qualquer direito cívico em sã consciência e com conhecimento de causa.
Nós sabemos que a opinião dos políticos é variável consoante os fins que pretendem atingir, mas isso não deveria justificar abastecer-se no quadro das carências sociais desses mesmos cidadãos para pretender virá-los contra si próprios, num futuro em que por via de uma assertiva prepotência cívica, lhes estivesse reservado o grau zero da sobrevivência humana e o forçoso isolamento de um estado de progressivo desenvolvimento económico e social. Que é o que aconteceria num cenário de descontrolo do défice orçamental, implicando directamente a suspensão do programa de reformas em curso.
Desonestidade intelectual é como me é dado interpretar este posicionamento ideológico de José Pacheco Pereira. Debata-se, mas debata-se a inevitabilidade da entrada em vigor do Tratado e não a sua dispensabilidade.

sexta-feira, outubro 26

O Quiproquo das escutas telefónicas


Considero um atentado directo à inteligência do Sr. Procurador-Geral da República, à inteligência dos cidadãos em geral e à dos cidadãos mais esclarecidos em particular, a solução que foi encontrada pelo Dr. Jorge Coelho para justificar as afirmações menos politicamente correctas da entrevista dada pelo senhor procurador ao semanário Sol.
A simples cogitação de que possam ser efectuadas escutas telefónicas a altos magistrados da nação através da mera aquisição, por um qualquer cidadão, de um equipamento que possua propriedades para o efeito, parece-me uma razão bastante parca, sem substância do ponto de vista argumentativo, que já não convence ninguém.
Criticar as afirmações proferidas pelo senhor procurador é uma forma de perseguição política, aliás como aconteceu com o anterior procurador, Dr. Souto Moura, cujos ataques à sua conduta profissional pelo poder político instalado, só serviram para fazer correr rios de tinta, na medida em que pontuou o bom senso do presidente da república e o apoio incondicional que lhe foi dado pela grande maioria dos cidadãos que nele depositavam a sua confiança.
Mas voltando às dúvidas bastante pertinentes do senhor procurador, sobre se está ou não a ser “escutado”, e que tanto incomodaram os políticos profissionais deste país, elas não são mais do que a constatação de uma realidade que está hoje em cima da mesa e que diz respeito ao novo modelo securitário que foi criado durante a presente legislatura, no âmbito da reforma do sistema de Segurança Interna e que sai fora da alçada dos órgãos institucionais do Estado que habitualmente tutelam essa área de competência, tendo passado a sua direcção a ser assegurada directamente pelo gabinete do senhor primeiro-ministro, portanto fora da área do quadro jurídico institucional previsto no âmbito do funcionamento do Estado de direito.
Tem, deste modo, fundamento a existência de uma tentativa de “dissecação” ou esvaziamento de poderes de um órgão do Estado, constitucionalmente autónomo dos restantes órgãos do poder central, e, objectivamente, o garante da legalidade democrática da função jurisdicional.
A mudança em Portugal com vista à instauração de um regime democrático pleno que não se esgota no actual modelo de democracia parlamentar, predestinada ao fracasso pelo cada vez mais ineficaz combate às vicissitudes de uma sociedade descaracterizada e egocêntrica, é hoje um dado adquirido, sendo disso prova inegável a boa receptividade que forças políticas extra-partidárias têm vindo a usufruir por parte dos cidadãos eleitores, nos recentes actos eleitorais.

quinta-feira, outubro 11

Doris Lessing: A escolha perfeita


Quando entrevistei Doris Lessing no princípio deste ano para o “Guardian Book Club”, não duvidei de que esta figura vergada, de pequena estatura, fosse uma presença formidável. Ela foi o primeiro escritor a ser ovacionado numa cerimónia do “Book Club”, logo à entrada, simplesmente pela força que emanava da sua presença. Quando lhe foram colocadas questões pelos presentes, ficou claro que ela possuía um dos requisitos comuns aos galardoados com o Prémio Nobel: os leitores que acreditavam que ela tinha mudado as suas vidas. Mas o seu ponto mais alto - evidente, penso eu, na sua escrita -, é o facto de ela não se apoiar na sua reputação.
Alguns dos seus admiradores mais antigos que a convidaram a celebrar a nostalgia dos tempos da libertação e do idealismo político, foram surpreendidos pelo enfraquecimento das suas posições, pelo logro que representou o seu próprio passado e o dos seus antigos camaradas. Ela poderá ter sido parte activa do movimento feminista sem, contudo, se ter importado se os ideais que defendia eram ou não feministas.

A maior parte das atenções foram despoletadas pelo facto de Doris Lessing ser a 11ª mulher a ganhar o prémio, num total de 104 prémios atribuídos. Menos relevante foi o facto de, com 87 anos, ter sido a laureada com mais idade dos premiados, batendo o historiador alemão, Theodor Mommsen, que tinha 85 quando lhe foi atribuído o prémio, em 1902. Quem a contactar pessoalmente, não terá dúvidas de que está perante uma inteligência activa versada no campo da argumentação. Já não necessita de obsequiar os seus leitores, tanto pessoalmente como através da escrita; as suas histórias e opiniões ainda causam sensação. Os revisores não foram particularmente simpáticos com o seu último romance “The Cleft”, publicado no início deste ano. Mas mostrou-se foi admirável o facto de ela ter conseguido produzir, aos 87 anos, esta perturbante fábula sobre o aspecto negativo da condição humana no homem e na mulher. Os defeitos que alguns encontraram – o peso das ideias no livro e a sua ambição intelectual – são suficientemente fora do comum para me parecerem virtudes.
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Os homenageados com o Prémio Nobel são certamente figuras que possuem um já longo currículo no campo das letras – o reconhecimento de um estatuto conseguido ao longo de décadas num esforço continuado. Foi assim com Harold Pinter há um par de anos, e, como no caso de Pinter, persistirá a ideia de que o prémio é a marca da sua influência na política.
Ficou conhecida como romancista feminista, particularmente pelo seu romance mais importante, “The Golden Notebook”. Este definiu um tempo em que a ficção se fazia a partir dos argumentos das mulheres sobre o que se poderia vir a entender por “Free Women” (o título do primeiro capítulo do livro). Foi um tema audacioso para o ano de 1962. Trouxe ao romance inglês uma mistura emocionante de ideias novas: debate político, sessões de psicoterapia, sexo desastroso. É o primeiro romance que eu conheço a incluir menções explícitas sobre tampões e tensão pré-menstrual. Foi um romance em que as contradições entre os diferentes desejos e necessidades da mulher são formalmente tratadas de uma forma genuina. O “The Golden Notebook” é composto por quatro cadernos (preto, encarnado, amarelo e azul), todos supostamente escritos por Anna, a heroína de Lessing: diferentes narrativas só que mantidas em conjunto.
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Tem sido normalmente o conteúdo da ficção de Lessing que tem despertado as atenções. O que é muitas vezes menos notado é a sua incansável experiência com a forma e o género. Pareceu não a preocupar o facto de muitos leitores terem sido deixados para trás, quando seguiu a via da ficção científica no final dos anos 70, início dos anos 80. Atraía-a este género literário, porque estava empenhada em escrever romances de ideias; as vendas não a preocupavam. Escreveu então “Diary of a Good Neighbour (1983), respondendo, assim, e de uma forma maliciosa e ressentida, àqueles que lamentaram que ela tivesse abandonado o “mundo real”. Uma narrativa realista acutilante sobre a terceira idade, que enviou para os editores assinada sob o pseudónimo Jane Somers. Estava encantada com o facto de ter chegado à conclusão que sem o nome “Doris Lessing”, os editores e os revisores (e talvez os leitores) não fizessem ideia qual a direcção ficcional que ela pudesse vir a tomar.
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O dinheiro do prémio e o reconhecimento serão ambos sem dúvida bem vindos. E talvez que o Prémio Nobel venha a ter ainda outra propriedade. Esta tarde, perguntei a um grupo de 24 estudantes universitários do primeiro ano de Literatura Inglesa, sobre quem é que já tinha ouvido falar de Doris Lessing (não li, acabei de ouvir falar). Somente seis levantaram as mãos. Claramente algum do brilho da sua reputação já se extinguiu há muito tempo.

John Mullan,
The Guardian blog books

O Paradoxo do Ornitorrinco


Paradoxal e geradora de controvérsia é a forma que José Pacheco Pereira encontrou para levar ao conhecimento público mais alargado, a crítica acutilante que tem vindo a fazer no seu blogue a todos os militantes do PSD que entenderam não favorecer a candidatura de Marques Mendes pela enésima vez. Através da edição de um livro contendo textos dirigidos ao “gang” dos social-democratas, aproveita para daí tirar os seus dividendos, num rasgo de autêntica perda de noção do ridículo.
Não entendo como, sendo JPP um historiador de nomeada, ao qual se lhe atribui e muito justamente o estatuto de intelectual, não se tenha ainda apercebido que o principal culpado da facção Mendista ter sido afastada de uma forma expressiva dos órgãos do poder daquela estrutura partidária, é justamente José Sócrates que veio ocupar o espaço político correspondente a uma terceira via do exercício do poder (à la Blair), mas que, em princípio, estaria mais dentro do espírito social-democrata e da sua linha programática.
A história é feita de ciclos e a dos partidos políticos também. Com esta ocupação do seu espaço, ao PSD caber-lhe-ia reformular toda a sua linha programática, modernizá-la, inovando-a ideologicamente, entrando pela via da direita liberal, e tentando abrir caminho a uma área politico-ideológica praticamente inexistente em Portugal, mas que, futuramente, irá ter lugar no plano de uma “politica globalizada” a ser exercida pelos órgãos do poder central no âmbito da União Europeia, como resultará das convenções internas que entretanto irão sendo acordadas e subscritas, de modo a abranger todos os países que dela fazem parte.
Toda a liderança social-democrata que não enveredar por esse caminho, propondo-se unicamente disputar com José Sócrates o mesmo ideário político, a mesma linha de actuação que não inova, que visa alcançar os mesmos objectivos só que com armas diferentes, arrisca-se a ficar eternamente refém da sua posição de maior grupo parlamentar da oposição. No final do seu segundo mandato, o actual partido socialista já terá atingido o grau de saturação aos olhos da opinião pública; impõe-se, portanto, que a alternativa se apresente promissora e credível, no sentido de ser capaz de dar continuidade ao projecto iniciado, dando-lhe consistência. Não sei se Luís Filipe Menezes será o líder ideal para levar a cabo essa empreitada, mas na falta de alternativas é preciso, pelo menos, que lhe seja dado o benefício da dúvida.

domingo, outubro 7

Democracia: Myanmar - O papel da China no conflito

"Burmese Faces", fotografia de Rodrigo Adão da Fonseca
no
Blue Lounge
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A comunidade internacional tem feito apelos incessantes junto das autoridades chinesas no sentido de estas exercerem toda a sua influência em torno da Junta militar birmanesa para por fim aos actos de violência praticados contra os revoltosos em Rangoon.
Numa entrevista dada a um jornal alemão, Javier Solana referiu que todos os países que têm influência nas decisões dos que detêm o poder em Myanmar, deveriam começar a agir rapidamente, especialmente os seus vizinhos mais directos, como é o caso da China.
A comunidade internacional tem-se mostrado activa neste conflito, recorrendo, para além da pressão diplomática, à via da imposição de sanções económicas. O Japão, um dos maiores países doadores e investidores em Burma, pretende que sejam punidos os autores do disparo que vitimou o jornalista da Agência France Press sediada em Tokyo, prometendo suspender todo o apoio financeiro, à semelhança do que aconteceu em 2003, quando mandou cancelar os empréstimos de taxas de juro bonificadas, destinados aos grandes projectos de infra-estruturas, em protesto contra a detenção sistemática do líder pró-democracia Aung San Suu Kyi.

No entanto, a China é o principal país protector do regime militar de Myanmar, e tem tentado obstaculizar todas as tentativas internacionais para fazer cair o regime. Com o apoio da Rússia, impediu, há cerca de nove meses, através do veto, uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que visava autorizar o secretário-geral da ONU a negociar directamente com a Junta militar birmanesa.
Apesar de afirmar que não é sua intenção imiscuir-se na política interna dos outros países, o seu apoio ao actual regime militar birmanês é claro e efectivo. Tem vindo a ajudar financeiramente à construção das infra-estruturas rodoviárias e de barragens naquele país, mantendo, em contrapartida, interesses em sectores chave da economia birmanesa, para além de, nas cidades, já habitar um número considerável de cidadãos chineses.
Assim sendo, e conhecendo nós a sua forma de actuar em matéria de democracia e direitos humanos (vide a sua posição inicialmente intransigente em relação ao Darfur), o que levaria a China a exercer uma influência positiva sobre o regime militar birmanês? Por um lado os interesses económicos, por outro lado a sua imagem junto da comunidade internacional, sobretudo às vésperas da realização dos jogos olímpicos em Pekin.
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Para a China será sempre preferível a negociação à repressão e à instabilidade que poderiam resultar de um banho de sangue em Myanmar. Apesar do regime militar birmanês ter vindo a desmantelar todas as estruturas políticas da oposição, mantem-se intacto o partido pró-democracia de Aung San Suu Kyi que tem o apoio da comunidade monástica. A via da negociação seria convencer os militares a fazerem a transição pacífica para um regime constitucional, o que resultaria no interesse de todas as partes envolvidas, incluindo a dos próprios militares.
Se for intenção da China preservar os seus investimentos e assegurar a estabilidade regional, é necessário que compreenda que é de todo o seu interesse apoiar uma tal transição, em vez de ajudar à viabilização de ditaduras instáveis.
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Fonte: The Sydney Morning Herald

sexta-feira, outubro 5

Democracia: Myanmar - Os bronzes sempre à frente

"Burmese Faces", fotografia de Rodrigo Adão da Fonseca
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Os monges budistas desempenharam um papel de primeiro plano na vida política e social do país. E, apesar da repressão, continuam a ser a única força capaz de fazer face aos militares.
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Pode parecer estranho aos olhos dos observadores internacionais que a direcção do movimento de protesto popular em Myanmar, tenha sido assegurada por religiosos, geralmente considerados como estando acima das contingências terrestres. No entanto, não é a primeira vez que os monges budistas descem à rua para reivindicar uma mudança política.

Na realidade, a instituição monástica birmanesa tem uma grande tradição no âmbito do activismo político. Após o período da dominação britânica, os monges tiveram sempre um papel político central. Muitas das revoltas anti-coloniais foram, pelo menos em parte, organizadas e dirigidas pela classe clerical. Por exemplo, o venerando U Ottama, organizou em 1918, os primeiros actos no seio do Conselho geral das associações budistas. Foi ele que inaugurou a prática das campanhas de boicote e também foi o primeiro cidadão a ser preso pelas autoridades colonialistas, no seguimento de um discurso proferido em 1921. Por seu lado, o venerando U Wisara sucumbiu, após 166 dias, na sequência de uma greve de fome que iniciou contra o regime colonial.

A revolta armada mais importante contra o regime colonial na Birmânia, foi lançada em 1930-1931 pelo monge Saya San, e contou com uma forte componente budista. Os monges tiveram parte activa na organização dos “rebeldes” que participaram num movimento insurreccional que durou mais de dois anos, exigindo a intervenção de cerca de 10 000 soldados britânicos para o combater, tendo-se saldado pela morte de cerca de 10 000 birmaneses, de entre os quais o líder do movimento, Saya San.
Os monges tiveram de novo uma participação muito activa no movimento democrático que varreu o país em 1988. Os jovens noviços desempenharam um papel preponderante, na maior parte das manifestações da altura, organizadas e dirigidas pelos estudantes, no que toca à manutenção da ordem, conferindo ao movimento estudantil forte legitimidade moral – apesar de alguns relatórios se referirem à participação dos monges nas acções de represálias levadas a cabo pelos militares. Com o início da “carnificina” em 8 de Agosto de 1988, foram abatidos pelos militares numerosos religiosos.

Em Outubro de 1990, os monges de Mandalay (segunda cidade do país, antiga capital real e detentora do maior número de mosteiros), em sinal de protesto contra as mortes, as capturas e as humilhações infligidas durante a repressão de 1988, e contra o clima de insegurança vivido posteriormente, decretaram um boicote às oferendas feitas aos mosteiros pelos generais e suas famílias. O Conselho para a restauração da lei e da ordem da época (SLORC, o antigo nome dado ao regime), reagiu com violência atacando os mosteiros. Foram-lhes retirados os hábitos e colocados em prisão cerca de 300 monges.

No entanto, o regime está consciente da importância que detem a comunidade monástica junto da sociedade birmanesa. Através dos meios de comunicação que controla, são difundidas quase diariamente imagens e reportagens de visitas de oficiais aos mosteiros, fazendo a entrega de somas de dinheiro ou de objectos de devoção, ou ainda atribuindo-lhes títulos religiosos. Com estes actos, os generais no poder pretendem divulgar que contribuem para a construção de mosteiros e pagodes e, ainda, que obsequeiam as eminências religiosas com oferendas e presentes.
Os donativos e as atribuições de títulos constituem, da parte dos militares, uma tentativa grosseira de distinguir a hierarquia religiosa, dando-lhes uma imagem de legitimidade moral aos olhos da opinião pública.
É, no entanto, digno de nota o facto de o Ministério dos “Negócios” Religiosos ser actualmente dirigido por um militar, o general Thura Myint Maung. Na cultura budista birmanesa, todo o homem é suposto tornar-se monge, pelo menos uma vez na vida, geralmente antes do seu casamento ou após a morte de seu pai. Por outro lado, os clérigos têm um papel importante em matéria de ajuda social, colmatando, na maior parte dos casos, a falta de assistência provocada pela ausência do apoio governamental. Na maior parte das vezes os jovens seguem o caminho religioso para beneficiarem da educação gratuita fornecida pela instituição monástica.

Os mosteiros acolhem também numerosos jovens noviços descontentes, com a falta de oportunidades oferecidas por uma economia mal gerida e estritamente controlada de Myanmar. A própria envolvência monástica constitui um local propício para os debates, incluindo os políticos, onde as pessoas do povo se queixam dos seus males, buscando no templo aconselhamento e conforto religioso. Com o passar dos anos, os templos transformaram-se, assim, em locais onde fervilha a dissensão anti-governamental.
As actuais manifestações foram desencadeadas por uma preocupação muito própria: o aumento vertiginoso do preço da gasolina em meados de Agosto. As primeiras manifestações foram dirigidas por conhecidos militantes (alguns são membros da Geração de 88). Mas, após os incidentes de 5 de Setembro, na cidade de Pakokku, no centro do país, durante os quais vários monges foram severamente espancados ou presos pelos militares, os monges passaram a liderar o movimento de protesto.

Agora a questão está em saber se os religiosos têm capacidade para prosseguir com o seu movimento de protesto. A influência budista é forte e a emoção suscitada pelo espectáculo de soldatos a disparar sobre os monges poderia desencadear uma insurreição generalizada. Muitos esperam que, de futuro, os soldados se recusem a obedecer a ordens no sentido de atirar sobre os monges, mesmo que, até ao momento, não haja conhecimento de qualquer deserção ou ruptura na cadeia do comando, no seio das forças militares.

Brian McCartan, Asia Times Online

quinta-feira, outubro 4

Democracia: Estados-Unidos - A Tentação Dinástica


Nos Estados-Unidos a tentação dinástica faz o seu percurso, apesar da concentração dos poderes daí resultante, poder ser travada através dos boletins de voto.
Se Hillary Clinton for eleita em 2008, e, posteriormente, num segundo mandato em 2012, isso significará que a Casa Branca terá ficado nas mãos de duas famílias durante sete mandatos presidenciais consecutivos. George W. Bush conquistou a Casa Branca em grande parte porque herdou de um anterior presidente um nome e o seu respectivo bloco de endereços das entidades doadoras.
Se os americanos pretendem que a América seja uma democracia aberta e igualitária, deverão pensar duas vezes antes de permitir a substituição da dinastia actual por uma outra.
Na Ásia, em países como o Paquistão, a Índia, o Bangladesh e o Sri Lanka, a prática corrente de uma esposa, um filho ou filha herdarem o poder, é vista como natural, mas também é sintoma de uma democracia imatura. Para a América ser comparável ao Sri Lanka, bastaria para tanto que Jeb Bush, irmão do actual presidente, sucedesse na Casa Branca a Hillary Clinton.
A eleição na América da primeira mulher para presidente, constituirá sempre uma lufada de ar fresco no sistema político americano, assim como também a eleição de um primeiro presidente negro ou latino-americano, à semelhança do que aconteceu com a eleição de John Kennedy em 1960, o primeiro presidente católico a ser eleito. Mas para que não seja entendida como “dinastia presidencial”, será necessário que à primeira mulher eleita não lhe liguem laços familiares com anteriores presidentes, pois, o que teria de acontecimento inédito e inovador, em matéria de presidenciais na América, logo o efeito seria atenuado pela simbologia associada a este tipo de eleição, por via da sucessão dinástica, como seria no caso da Argentina ou do Bangladesh.
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Fonte: The New York Times

Democracia: Um jogo de cadeiras perante o povo


Fukuyama tinha razão neste ponto : o número de países ditos “democráticos” não cessa de aumentar. É claramente mais elevado do que em Outubro de 1989, às vésperas da queda do muro de Berlim. É inclusivamente mais elevado do que há dez anos. De facto, nunca se realizaram tantos actos eleitorais livres – ou quase livres – no mundo. Devemos regozijar-nos por isso? Nem tanto! Ainda há um fosso entre democracia formal e democracia real. Tanto ao Norte como ao Sul, o dinheiro compra votos e controla os meios de comunicação. E as dinastias políticas, astuciosamente ignoradas pela História, instalam-se no coração das “democracias”. Nenhum país é poupado. Podemos, certamente, contentar-nos com a definição minimalista proposta por Karl Popper. Para este filósofo liberal, a democracia não é mais do que permitir ao povo, de tempos a tempos, “recusar os homens que estão no poder”, substituindo-os pelos que foram anteriormente demitidos.
Na Rússia, sem dúvida, os democratas contentar-se-iam com isto. Mas Putin decidiu de outra forma. No dia 1 de Outubro, anunciou o seu propósito em se tornar Primeiro-ministro, após as legislativas de Dezembro, conferindo ao actual, Viktor Zubkov, seu amigo de longa data, o lugar de presidente. Com 66 anos, o actual Primeiro-ministro já não tem o perfil de um delfim potencial. Neste jogo de cadeiras, o eleitor russo é iludido. Como observa Moskovski Komsomolets, o chefe do Kremlin fez correr o ferrolho da Constituição (que não lhe permitia candidatar-se a um terceiro mandato) e aboliu todo e qualquer limite temporal: “Como o povo é fraco, teremos Putin para sempre!”
Rússia, Paquistão, Myanmar, Iraque, Palestina… Por todo o lado, a democracia – esta soberania do povo – coloca problemas. Para dar a conhecer as suas dificuldades, o canal de televisão Arte encomendou dez filmes, propondo, de 8 a 15 de Outubro, uma grande abordagem a este horizonte. O Correio Internacional, partidário desta inteligente iniciativa da cadeia televisiva franco-alemã, consagra o essencial do seu número ( 883 de 4 de Outubro) aos prós e contras da democracia no mundo. Sem pessimismo, mas também sem optimismo.
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Philippe Thureau-Dangin
Courrier International, Editorial
(edição francesa)