quinta-feira, julho 5

Mísia outra vez

Théâtre des Bouffes du Nord "Lisboarium" - Paris (2007)
© Davy Blanc


Pese embora ao meu amigo Armando Silva Carvalho, gosto muito da Mísia, quer no plano humano, quer no plano profissional. Descobri-a relativamente tarde, num espectáculo a que assisti em Paris, e em que a fui ver ao camarim para lhe dizer pessoalmente quanto tinha gostado. Ao regressar a Portugal, desenvolvemos uma amizade importante para mim, até que a Mísia decidiu, suponho que com alguma razão, que o país a não reconhecia suficientemente, e que era a vez de ela passar a viver em Paris. Da última vez que lá fui verifiquei por um lado que, desde cartazes no Metro a pilhas enormes dos seus discos na FNAC e noutros locais, a sua projecção internacional era um facto. Numa das suas vindas a Lisboa, fiquei a dever-lhe um jantar com Fanny Ardant (o que não é dívida que se pague com facilidade). Quando estive em Paris, andei por alguns dos seus lugares-fétiche, como a livraria Les Cahiers de Colette, que eu já conhecia por morar no Marais e ficar praticamente no prolongamento da minha rua, mas também o restaurante Le Bouldogue, onde ela é acolhida, estimada e mimada.O que gosto na Mísia como fadista tem a ver com o modo como ela retoma a tradição (cantando sempre de forma admirável a belíssima Lágrima, de Amália Rodrigues), mas também pela maneira exigentíssima como vai procurar novas letras para os seus fados, recorrendo para isso aos melhores escritores portugueses, de Agustina Bessa Luís a José Saramago, e em dada altura, num excelente disco a partir de Carlos Paredes, solicitando o apoio do poeta Vasco Graça Moura (que escreveu alguns fados absolutamente extraordinários). Que isso lhe tenha dado a aura de "intelectual" (e como se sabe há sempre uns vesgos para quem ser inteligente é sinónimo de patologia grave) é algo secundário, mas que de certo modo a marcou, porque as pessoas são sempre mais vulneráveis do que parecem.
A Mísia tem neste momento um livro publicado em Portugal: trata-se de uma sequência de entrevistas feitas em França, com um jornalista parisiense, Hervé Pons, que, na sessão de lançamento no São Luiz, se mostrou de uma admiração ilimitada por ela. Este livro acaba de ser lançado em Portugal pela ASA Editores, numa subsecção intitulada Oceanos. E nele Mísia desenvolve com grande pormenor (mas, como ela própria nos diz, nunca se pode dizer tudo: e o que é o "tudo" que define uma pessoa?) inúmeros aspectos de uma vida difícil, com um pai bastante ausente, com um início de vida como stripper (documentado nas fotografias que acompanham o volume), com uma forte relação com a Espanha pelo lado da mãe, com uma vida em Portugal em que nunca sente que encontrou o seu lugar, com uma tentativa de suicídio, que seria, como nos explica, uma procura definitiva de encontrar um lugar, e com uma ida para Paris em termos que, sem abandonar o seu passado de fadista, abrem para outros horizontes, de que a actual experiência que realizou no São Carlos com "Maria de Buenos Aires" é apenas um exemplo. Mísia, que escreve extremamente bem, propõe-se mesmo escrever um livro "sobre a minha mãe, a minha avó e eu, as três gerações que trabalharam no cabaré El Molino". Resta dizer que o livro é de grande interesse e que se lê com o maior prazer.
Eduardo Prado Coelho
(Público de 05.07.2007)

Sem comentários: